Marranismo em terras Lusitanas.
O Patrimônio Histórico, Cultural e Religioso dos Anoussitas
Por Maria Antonieta Garcia
O interesse pelo marranismo nasceu em Belmonte, onde sobreviveu uma comunidade cujos membros eram/são identificados como judeus.
Em 1972, fui encarregada pelo Ministério da Educação para proceder à abertura de uma escola oficial do Ciclo Preparatório nesta vila da Beira Baixa. Foi uma surpresa a linguagem que então ouvimos, porque a julgávamos desaparecida. ``Há muitos judeus matriculados? Alugou uma casa a um judeu?'', eram frases cuja mensagem ultrapassava a mera interrogação. Não descodificávamos os matizes das significações, mas apercebíamos do aviso/censura que as envolvia, quando mais tarde, não judeus afirmavam explicitamente: "Cuidado! Quando os conhecer, verá que não prestam para nada!''. Estranhámos ainda mais ao ouvir comentar a qualificados democratas da vila: "Não tenho nada contra eles, mas não gosto deles!''. Era uma opinião alargada, partilhada por elementos exteriores à comunidade, que aos judeus belmontenses aconselhavam, de acordo com o contexto, ora a assunção da diferença, ora a assimilação. Ouvíamos:
- Sejam judeus verdadeiros!
- Deixem de ser judeus!
Quem eram estes judeus?
Na Escola, não notávamos quaisquer atitudes que os diferenciassem da maioria dos alunos. Reconhecíamos-los pelos sobrenomes que nos haviam indicado: Nunes, Morão, Caetano, Henriques, Rodrigues, Vaz, Diogo, Lima, Pimentel, Rosa, Gonçalves, Madeira... cruzavam-se em combinações múltiplas, confirmando uma opção duradoura pela endogamia. Mas eram sempre elementos da sociedade envolvente que se pronunciavam. As pessoas a quem identificavam como judias fechavam-se ou, inteligente e ambiguamente, respondiam: "Somos pessoas como as outras''.
Porém, dia a dia, íamos registrando indícios reveladores da Diferença. Por exemplo: decidimos pagar o aluguel da casa, "Sexta-feira, depois do pôr do sol''. A proprietária, judia, como dissemos, recusou receber o dinheiro, apesar da insistência. A limpeza meticulosa de Shabat era outro sinal; depois, aqui e ali, começámos a ouvi-los lamentar-se sobre discriminações de que eram alvo, a verificá-las1, mas a ocultação e o secretismo eram a prática corrente.
Só após Abril de 1974, foi possível estabelecer uma relação mais próxima com elementos da comunidade. O convívio que tínhamos mantido até então, favorecera a ideia de que havia uma cumplicidade de crenças. Argumentava o proprietário da casa onde vivíamos: "A Senhora acartou'' o meu filho, quando íamos para os mercados. Eu sempre disse à minha: a Senhora é das nossas! É da família!''. Pudemos, então, verificar que, cinco séculos após a criação da Inquisição, em Belmonte sobreviviam festas, rituais, orações preservadas por uma comunidade herdeira de uma religião que vingou apesar das perseguições, do potro, dos tratos de polé, dos autos da fé.
Lemos em "Libération'', (1990): "Mais à Belmonte, peut-on expliquer pourquoi le marranisme s'est maintenu?''; respondeu Frédéric Brenner, autor de "Les Marranes'': "Je n'ai pas cessé de me poser la question, ça tient du miracle''2.
E outras razões, por certo.
Sinagoga de Belmonte / Portugal.
Judeus em Belmonte : O documento mais antigo que conhecemos é uma lápide com uma inscrição3 em hebraico, datada de 1297 (segundo leitura de Samuel Schwarz), e que pertencia à Sinagoga. Portanto, antes da expulsão dos judeus de Espanha, em 1492, vivia em Belmonte uma comunidade organizada. É plausível que o número de elementos tenha aumentado com a decisão dos Reis Católicos. Em Dezembro de 1496, D. Manuel I publica o Édito de Expulsão dos Judeus; em 1497, o monarca obriga ao batismo forçado, à conversão os que permaneceram, voluntária ou involuntariamente, em Portugal. Serão os cristãos-novos, os marranos.
Para Elias Lipiner, trata-se de uma designação "(...) dada aos judeus que foram tornados cristãos à força, mas continuavam a seguir ocultamente os ritos da lei velha''4. O vocábulo teria raiz hebraica ou aramaica: mar-anús, ou seja, batizado à força. Afeiçoado à fonologia das línguas ibéricas tornar-se-ia marrano, (Que em Espanhol, significa Porcos). Foi, porém, a conotação pejorativa, registada por Frei Francisco de Torrejoncillo, que fez escola. Marrano "(...) que en Hespanhol quer dizer, porcos, e assim por infâmia lhe davão este nome com grande propriedade: porque entre os marranos, ou marroens, quando grunhia e se queixa algum deles, todos os mais acodem a seu grunhido, como assim são os judeus.''5. Era este o significado que ainda sobrevivia em Belmonte, associado ao foetur judaicus e a outros estereótipos. Mantinham-se superando, afinal, o tempo marcado pela Inquisição.
Ser marrano : A instalação do tribunal da Inquisição, em Portugal, obrigou todos os judeus ao batismo; também o casamento, os rituais funerários, os cultos no exterior dos lares seguiam a doutrina católica. A herança cultural judaica era transmitida oralmente, de geração em geração; mas aprendiam, como forma de sobrevivência6, os rudimentos do catolicismo. A "contaminação'' de fés era inevitável e com o decorrer dos tempos, a maioria dos que permaneceram no país adota práticas sincréticas. Todavia, os anussim (convertidos à força) diziam-se e sentiam-se voluntariamente judeus.... e a vontade individual é uma dimensão que participa na construção da identidade. Não responderam de forma homogénea ao contexto inquisitorial: a) uns aderiram convictamente à nova fé; b) outros exilaram-se para continuar a praticar a lei de Moisés; c) houve quem se tornasse cético, desiludido; d) muitos continuaram a judaizar clandestinamente, com graus de adesão e de conhecimento diversos, mostrando-se católicos no exterior. São os marranos que perpetuaram tradições sagradas, mitos e memórias comuns, produziram e reproduziram laços identitários.
Sabemos que António José Saraiva afirmara que os cristãos-novos tinham desaparecido "... como uma miragem ao toque dos decretos de Pombal (...)''7. Mas a religião, as culturas não se apagam, proíbem ou fazem desaparecer, por decreto. De resto, o próprio Marquês de Pombal, após a publicação da "... saudável Lei de vinte e sinco de Maio do ano de 1773'' que abolia a "... sediosa distinção de Cristãos Novos e Cristãos Velhos...'', se vê obrigado, em Dezembro de 1774, a desterrar dois absurdos que qualifica de "... notórios e tão intoleráveis, que são contrários a todos os Direitos''.
Na verdade, passado mais de um ano da abolição da distinção, a jurisprudência mantinha-se. Lemos: "... os verdadeiros confitentes reconciliados com a Igreja, e por Ela recebidos no seu benigno grêmio, podem ficar ainda assim infâmes e inhabeis nas suas pessoas, e nas dos seus filhos, e netos pela via Paterna (...)''; além disso, "(...) ficão incursos na perda de seus bens para o Meu Fisco, e Camara Real''8. São estes "absurdos'' que persistiam, revelando resistência ao cumprimento da Lei, tecendo práticas que garantiam o status quo. Venceu o poder real e, por esta época, regressaram muitos judeus ao país.
No que respeita a Belmonte, tem-se repetido que os judeus que residem na vila ali se fixaram, vindos de Marrocos, após a decisão pombalina. A afirmação mais recente que envolve este domínio, encontrámo-la no livro "Beira Baixa'': "Nos finais do século XVIII estabeleceu-se em Belmonte uma grande colônia de judeus. Ocuparam um bairro designado por Marrocos que se transformou em judiaria fechada''9. Trata-se duma legenda obviamente sucinta que sugere mais do que garante. Mas será possível falar duma "judiaria fechada'' no século XVIII? A "grande colônia de judeus'' estabeleceu-se em Belmonte porquê? Vinda de onde? Se eram judeus exilados que regressavam, quando e por que perderam sobrenomes hebraicos?
Na verdade, sabemos que encontrámos dezenas de processos no A.N.T.T. e que nos séculos XVI, XVII e XVIII, naturais e residentes do concelho de Belmonte conheceram os cárceres da Inquisição. O último processo que recolhemos é de "Gracia Nunes, Gracia de Matos, cristã-nova, casada com Diogo Mendes Loução, lavrador, natural de Maçal do Chão, termo da vila de Celorico, e moradora na de Belmonte, Bispado da Guarda''; é condenada a "cárcere e hábito a arbítrio''10. O processo tem a data de 1750.
Verificámos também que a designação do Bairro, Marrocos11, (cuja toponímia teria origem na ocupação de judeus regressados do país com o mesmo nome) é anterior às leis pombalinas.
Nos Livros de Décima, Contribuição Predial Rústica, Contribuição Predial Urbana, de Agências, nos registos de nascimentos, casamentos e óbitos, bem como nos Livros de Atas da Câmara Municipal, figuram nomes de ascendentes de membros que integram a comunidade atual.
Eram judeus secretos, transmitiram uma tradição que se habituaram a ocultar, alternando períodos de maior clandestinidade, com outros de maior abertura.
É Samuel Schwarz que, em 1925, com a publicação do livro "Os cristãos novos em Portugal no séc. XX'', inicia a desocultação da existência dos judeus belmontenses, para o mundo. Vindo para o conselho, em 1917, para dirigir a exploração do couto mineiro da Gaia, um dos mais ricos jazigos de cassiterite da Europa, ouve qualificar Belmonte como "terra de judeus''. Afirma que "Só depois de muitos meses de continuados esforços e ainda graças a um concurso de curiosissimas circunstâncias, conseguimos ser admitidos no seu grêmio e assistir e tomar parte nas suas orações e cerimônias judaicas''12. O encontro ocasional, em Lisboa, com o belmontense Baltazar Pereira de Sousa, homem de negócios, que ouvira apelidar de judeu e que levou à Sinagoga de Lisboa, foi a chave que abriu todas as portas. Regressado à vila, submete-se ainda a um teste: pedem-lhe que reze uma oração. Fê-lo em hebraico, mas entre os vocábulos que pronuncia, identificam Adonai. Estava aceite: "É um dos nossos.''.
O tempo era favorável. A implantação da I República permitia confiança. Nos Livros de Atas da Câmara Municipal é notória a influência de membros da comunidade durante este período. José Henriques Pereira de Sousa e José Caetano Vaz, por alvará do Governador Civil de Castelo Branco de 13 de Outubro de 1910 13, integram a Comissão Municipal Eletiva, o primeiro como Presidente e o último como vereador do pelouro de Caria, a segunda povoação mais populosa do conselho. O trabalho que desenvolvem, surpreende se o confrontarmos com o de Executivos camarários anteriores e posteriores. A criação de escolas, as medidas sanitárias, as obras de remodelação e restauro de imóveis, a elaboração de planos para a construção de estradas... contrastam com a habitual gestão rotineira que Atas das sessões camarárias doutros períodos registam.
O anticlericalismo, um dos traços da época, beneficiaria um grupo de pessoas que mantinha com a Igreja Católica uma relação de distanciamento. É neste clima que Samuel Schwarz trava conhecimento com a comunidade.
No Porto crescia o movimento liderado por Barros Basto. Era o renascer do Judaísmo nas Beiras e Trás-os-Montes. O jornal Ha-Lapid vai noticiando a renovação de um saber e de um fazer cultivado durante gerações. O conhecimento da perseverança dos marranos portugueses através de A Obra do Resgate de Barros Basto, do livro de Samuel Schwarz, despertou o interesse do mundo judaico. Em Janeiro de 1926, Lucien Wolf vem a Portugal a pedido da Anglo Jewish Association, da Alliance Israélite Universelle e da Spanish Portuguese Jew's Congregation. Visitou Lisboa, Guarda, Belmonte, Caria, Covilhã, Coimbra e Porto. "Constatou diretamente que tais marranos não eram um mito, pois não só travou relações com eles mas também assistiu as suas reuniões culturais''
O relatório que elaborou esteve na origem da criação de "... um comité para ajudar os marranos portugueses''.
A 7 de Setembro de 1926, Paul Goodman, secretário do Portuguese Marranos Committee,informa Barros Basto sobre a constituição do referido comité16. Entretanto, o jornal Ha-Lapid divulga a história, cultura e preceitos judaicos, noticia os acontecimentos relevantes da vida das comunidades (vida comunal) e de A Obra do Resgate. É perceptível o interesse em motivar os descendentes de judeus para assumirem a identidade religiosa e exorcizar o medo. Escreve: "Nós que temos opiniões religiosas bem definidas inspiramos simpatia aos nossos adversários, entre os quais, apesar da diferença de credos, temos sinceras amizades''. Afirma mais Ben Rosh: "Um adversário nobre e leal tem direito sempre ao respeito do seu antagonista (...). Todo aquele que, para não ser perturbado na sua digestão, se entrega a uma doblez de carácter, só merece dos combatentes das várias crenças o desprezo (...)''17. Diga-se que este comportamento proselitista, de alguma forma, valer-lhe-ia desconfiança e incompreensão...
Mas a Obra do Resgate continuava. E sabemos assim que "Em Janeiro (1927), seguiram para Belmonte, fazer uma visita aos anussim daquela vila, alguns jovens excursionistas da Associação de Juventude Israelita "Hehaber'', que tiveram o prazer de ser recebidos em diversas casas criptojudias de Belmonte. Demoraram-se dois dias, e ficaram encantados com as amabilidades daquelas famílias, especialmente com as Sr.(as) & Srs. Pereira de Sousa (...). O Ex.mo Senhor Engenheiro Samuel Schwarz que se encontrava, na ocasião nesta visita em Belmonte, acompanhou os jovens do "Hehaber'' (...)18. O Yom Kippur é celebrado, em 1928, na mesma localidade. Está presente, de novo, Samuel Schwarz que distribui exemplares do livro Kether Malkhuth,19 editado pela Comunidade do Porto.
No mesmo ano Barros Basto "... leva a mensagem do Resgate a várias "povoações de marranos'': Vila Real, Chaves, Rebordelo, Vinhais, Macedo de Cavaleiros, Mogadouro, Vilarinho, Lagoaça, Moncorvo, Cedovim, Covilhã, Belmonte, Fundão e Aveiro''20.
Em Maio de 1929 "... visita em Castelo Branco alguns criptojudeus a quem deu várias explicações sobre o judaísmo e distribuiu vários livros, jornais e estampas judaicas''21.
É, porém, a Covilhã que merece maior atenção. No dia 4 de Maio de 1929, numa reunião de várias famílias "... em casa da Ex-ma Sr.ª D. Amélia Fernandes, bondosa e caritativa senhora cripto-judia, fiel observante dos ritos judaicos que lhe ensinaram seus pais foi decidida a fundação duma "Comunidade legal judaica, de acordo com as leis da República Portuguesa''22. Deliberam ainda que os estatutos seriam iguais aos da Comunidade do Porto. Dia 6 de Maio, em casa de José Henriques Pereira de Sousa, em Belmonte, decidem que o núcleo cripto-judeu da vila ficaria "adstrito à Comunidade da Covilhã''. Em Caria, o líder do Movimento do Resgate é Francisco Mendes Morão.
Samuel Schwarz é, então, considerado como "... o mensageiro do Resgate do distrito de Castelo Branco''; Ben Rosh di-lo-o "... um amigo da nossa causa'' que, com Lucien Wolf e Paul Goodman "... em todos os lares criptojudaicos devem ser memoriados e abençoados''.
Com a queda da primeira República, em 1926,o medo cresce , "... está arreigado no espírito de muita gente'' Ainda assim, as reuniões de criptojudeus continuam. A 29 de Julho de 1929 é legalizada no Governo Civil de Castelo Branco, a Comunidade Israelita da Covilhã. Elegem corpos gerentes; Francisco Henriques Gabinete será o Presidente da Junta Diretora; Samuel Schwarz manter-se-à Presidente da Assembleia Geral. A Sinagoga da Comunidade, Shaaré Kaballah (Porta da Tradição) é inaugurada em Setembro de 1929. O jornal refere a presença da M.me Oulman e de M.me Gradis que, na ocasião, oferecem 300 escudos "para serem distribuídos por pobres criptojudeus''23.
No mesmo ano, em Outubro, noticia o Ha-Lapid que "... uma quarentena de fiéis reuniu-se em oração em Kippur, na Sinagoga da Covilhã''; em 1930, inscrevem-se como membros da comunidade "... declarando desejarem professar abertamente o Judaísmo 36 criptojudeus''24.
As visitas à cidade tornam-se frequentes. A vinda de "... Abraham Brozinski, importante negociante e escritor hebraico da Polónia...'' acompanhado por Samuel Schwarz, foi motivo para a realização duma: "reunião com assistência de criptojudeus da melhor sociedade covilhanense.25''
No Fundão, efectuam-se também encontros, são distribuídos livros de orações e "... estampas com a figura de Moisés''.
Na Yeshivá Rosh Pinah, do Porto, inscrevem-se jovens que deveriam ser os futuros guias espirituais das comunidades. Frequentada, entre outros, por 5 belmontenses, 4 fundanenses, 4 covilhanenses, aprendiam práticas e rituais da Lei de Moisés.
Apesar de todo o dinamismo, o movimento de Barros Basto não vingou. Os processos militar e da P.I.D.E. arrastam à queda do projecto da Obra do Resgate. O nazismo, o estabelecimento do Estado Novo, as lutas de liderança entre judeus portugueses e os que no país se refugiavam, geram afastamentos, conflitos, a queda. Era o tempo das verdades indiscutíveis - D'us, Pátria, Família, Autoridade -; foi o tempo duma nova clausura religiosa por parte dos marranos.
Barros Basto e Samuel Schwarz verificaram que foram mulheres que memorizaram e transmitiram rituais e textos ou os escreviam26. O medo reinstalara-se e das comunidades que, então, se organizaram na Beira e tiveram local de culto, em vários locais da região mantinha-se o acender das candeias com torcidas de linho; a Páscoa marcada pela Haggadah judaica (a limpeza meticulosa das casas, por exemplo); muitas orações27; hábitos alimentares (o sangrar os animais, certos enchidos (alheiras) e, quem sabe?, doces conventuais que, não tendo leite na confecção, podem acompanhar pratos de peixe e carne); influências culturais (a ideia de Portugal como nação escolhida, o messianismo...).
Usos e costumes a que afeiçoaram novas significações. Mas em Idanha-a-Nova, na década de 70, contava-nos uma avó que não colhia as partes laterais dos campos que cultivava. O pobre, assim, podia fazer o pão e colher a fruta. E não ensinavam rabinos que os homem não devia cortar o cabelo dos lados (peot) para lembrar este preceito? Que origem tem, também, o ``fumo'', o pedaço de pano preto rasgado, que beirões colocam no braço, em sinal de luto? E o pão distribuído durante os funerais, em certas aldeias? E a ablução dos cadáveres?
A ausência de chefes religiosos, o distanciamento relativamente aos textos sagrados, redundou maioritariamente na assimilação dos judeus. Nos anos 90, nas comunidades beirãs da Covilhã, do Fundão, de Penamacor, de Pinhel sobrevive a memória duma ascendência judaica. Em alguns casos, independentemente da adesão à religião mosaica (podem ser mesmo católicos praticantes), repetem a afirmação identitária judaica, ou seja, assumem um judaísmo que se situa numa penumbra epistemológica. Afinal, também na Beira, como escreve Edgar Morin, judeu tornou-se um adjectivo que admite graus e tonalidades diversas.
Só Belmonte preservou um núcleo duro, construiu uma matriz cultural que abriu o caminho para o "retorno'' ao Judaísmo ortodoxo. Apesar do medo. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, belmontenses retiveram a existência duma "lista'' elaborada por pessoas que eram manifestamente anti-semitas. Dizem, referindo-se ao suposto lider: "... era um germanófilo. Ameaçava a comunidade com a divulgação e a denúncia na Alemanha, de pessoas da vila seguidoras da nossa Lei''.
Era um homem de poder e estas ameaças, a deslocação à Alemanha, garantiam obediência, conformismo e desencadearam muitos receios. Explicam: "Às vezes fugiam e dormiam nas "palheiras'' com o medo de serem apanhados''.
Durante o Estado Novo, também foram as mulheres as iniciadoras, as mestras do Judaísmo. É o tempo do prestígio das H'azzanot, das rezadeiras. A tradição que seguiam, fundamentada na memória, traíra conhecimentos e práticas. Mas a opção endogâmica favorecia a continuidade cúltica, o segredo face ao Outro.
O anti-judaísmo e o anti-semitismo desenharam solidariedades entre os judeus, alimentavam a cadeia de transmissão de fazeres e saberes.
Com Samuel Schwarz soubemos que, desde a Inquisição, as candeias de Shabat nunca se apagaram, que o jejum de 25 horas de Yom Kippur se cumpria rigorosamente, que o Purim da Santa Rainha Ester não fora esquecido, que a Pessach era vivida com "pão asmo'' ou "dismos'', com "ervas amargosas'', com a purificação das casas, reafirmando a esperança: "Para o ano que vem, em Jerusalém''. Soubemos que os casamentos se realizavam primeiro, segundo a Lei de Moisés; percebemos a génese das histórias dos abafadores28, quando conhecemos os rituais funerários que as mulheres realizavam antes de chamarem sacerdotes católicos e médicos, reiterando uma afirmação identitária judaica.
Na década de 80, quando foi possível o convívio com a comunidade, estes preceitos mantinham-se. Transmitidos oralmente, no feminino, contavam também alguns lares judaicos com o livro de Samuel Schwarz que guardavam ciosamente. Era o recurso certo, quando a memória traía. Judeus belmontenses, desde 1925, tinham à mão o manual do perfeito criptojudeu.
Assim preservaram rituais e textos de orações, tecendo uma coesão securizante que a partilha religiosa sustentava. Perpetuavam discursos de fé e invocavam a identidade de povo escolhido: "... Adonai, nosso Rei e Rei de todo o mundo que escolheste em nós mais que todos, e nos deste a Tua Santa Lei (...)''. Louvavam "... o Deus de Abraão, a constrição de David, a ciência de Salomão, a vitória de Gedeão, e o aviso que teve Lot, a felicidade de Jacob, o espírito de Elias, a caridade de Tobias e a paciência de Job''. Suplicavam: "... que não sejamos presos, nem feridos, nem mortos, nem nas mãos dos nossos inimigos postos''. Manifestavam o desejo de "... gozar a felicidade de Jerusalém...'', de aceder à Terra da Promissão.
Surpreendemo-nos ainda com textos ouvidos em Belmonte, que repetiam as palavras que os Inquisidores tinham registado nos processos de cristãos-novos. Entre outras, verificámos que a oração que acompanha o acender das candeias de Sábado, um momento sagrado, não se alterara, durante cinco séculos.
Escrevia F. Brenner: "Concrétement (...) dans leur quotidien, on ne peut décéler aucun signe apparent de judaïsme...''29. Não eram circuncidados, não possuíam livros sagrados, não falavam hebraico, não havia Sinagoga, nem rabinos. Mundo indecifrável para judeus que se habituaram a atribuir a pertença judaica a partir de critérios de que a prática marrânica se desvia.
Todavia, sempre guardaram tempos históricos com marca de sagrado. Guardar o Sábado é repetir o gesto divino; jejuar em Yom Kippur é lembrar as transgressões aos mandamentos judaicos, penitenciar-se; o Purim de Ester não fora esquecido porque a fraternidade de destinos, valorizou uma rainha que escondeu a identidade, mas foi salvadora do povo judeu; a Pessach é um elixir da esperança.
A prática da endogamia, a fidelidade a uma filosofia, à Lei de Moisés, o anti-judaísmo e o anti-semitismo, a presença de Samuel Schwarz na vila, o querer ser judeu, a crença na pertença ao povo escolhido, na errância redentora e a espera messiânica garantiram a manutenção duma mundivivência, de um património cultural específico.
Os judeus de Belmonte são herdeiros do marranismo: homens desenraizados fruíram a sua religião, com carta de alforria; confrontados hoje com práticas rabínicas ortodoxas alguns aceitam-nas; para outros o peso da re-educação, da conversão foi insustentável.
Mantiveram a sua autarcia judaica, renunciando à religião oficial; são os neo-marranos a construir a riqueza polimorfa do Judaísmo.
ARTUR CARLOS DE BARROS BASTO
Artur Carlos de Barros Basto (Amarante, 18 de Dezembro de 1887 — 1961) foi um militar português.
O capitão Artur Carlos de Barros Basto faleceu em 1961, sem ter sido reabilitado pelo Exército Português da decisão de 1943 do Ministro da Guerra que o exenorou das suas funções de oficial, pelo simples facto de ser judeu e um activo defensor da tolerância religiosa, e dos Marranos em particular. A sua reabilitação, apesar de vários pedidos, continua por acontecer.
Nascido no Porto em 1887, foi educado dentro do cristianismo, apesar de mas na juventude ao tomar conhecimento da sua ascendencia judaica (era de uma família de marranos de Amarante, e o seu avô era ainda um membro praticante da comunidade) inicia uma aproximação, primeiro teórica, e com a vinda para Lisboa, prática.
Ao mesmo tempo que iniciava a sua vida castrense, o então jovem Barros Basto apresentou-se um dia na sinagoga sefardita de Lisboa e declarou-se judeu. Apesar do seu empenho, a Congregação negou-lhe inicialmente a integração na congregação.
Por forma a ser aceite como membro de pleno direito, aprendeu o hebraico e deslocou-se a Marrocos para receber instrução religiosa. Em Tânger foi circuncidado e oficialmente aceite dentro da religião judaica, adoptando o nome de Abraham Israel Ben-Rosh.
Depois de cursar na Escola de Guerra, Barros Basto participou na Implantação da República. Foi ele que hasteou a bandeira da República, no Porto.
Posteriormente comandou um batalhão do Corpo Expedicionário Português, na Primeira Guerra Mundial, como tenente na Frente da Flandres, pelo que foi condecorado.
Barros Basto ficou conhecido como o “Apóstolo dos Marranos”, denominação que lhe foi dada pelo historiador Cecil Roth, e que descreveu o empenho com que se dedicou à sua “Obra do Resgate”.
“Adonai li velo irá” (Tenho Deus comigo, por isso não temerei”), era a sua divisa, e de fato não temeu percorrer o interior de Portugal a fazer o levantamentos, e os contatos, para salvaguardar a identidade única dos Marranos ao mesmo tempo que ambicionava traze-los para o judaísmo moderno.
De regresso ao Porto, fundou a comunidade israelita em 1923, e foi um dos impulsionadores da construção da Sinagoga do Porto, em 1938.
Dadas as dificuldades que encontrava em Portugal, sobretudo financeiras, partiu para o estrangeiro. Em Londres foi criado o Portuguese Marranos Commitee, que disponibilizou dez mil libras para a construção de um centro com sinagoga e sala de leitura e a admissão de um rabino residente.
COMO CONSTRUIR A ÁRVORE GENEALÓGICA
Fonte : http://antt.dgarq.gov.pt/pesquisar-na-torre-do-tombo/genealogia/
A Genealogia é o ramo da História que se dedica ao estudo das famílias, à sua origem e evolução, descrevendo as gerações em cadeia (em sentido ascendente ou descendente) e traçando, sempre que possível, as biografias dos seus membros.
Se pretende conhecer as suas raízes familiares e estudar a sua ascendência, tenha em conta as seguintes indicações:
Qualquer trabalho de pesquisa genealógica deverá iniciar-se tendo por base os assentos de batismo, de casamento e de óbito, registados nos livros paroquiais (livros de batismos, de casamentos e de óbitos). Por vezes, os livros paroquiais são mistos, isto é, concentram no mesmo livro registos de batismos e de casamentos ou de óbitos. Esta situação é sobretudo frequente nos livros mais antigos. Estes registros estavam a cargo dos párocos, motivo porque cada livro só inclui assentos de uma paróquia ou freguesia.
Sobretudo através dos assentos de batismo e de casamento obtêm-se informações essenciais para o estudo de qualquer família, como sejam: duas ou até três gerações com os nomes das pessoas, datas, naturalidades, moradas, profissões, relações de parentesco com os padrinhos e testemunhas, etc.
O registro dos batismos e dos casamentos “em livro próprio” só passou a ser obrigatório a partir de 1563 (por força de uma norma da 24ª sessão do Concílio de Trento), muito embora numerosas paróquias já o praticassem anteriormente. A obrigatoriedade do registro dos óbitos data de 1614.
Os livros paroquiais com menos de 100 anos encontram-se ainda nas Conservatórias do Registro Civil, enquanto que os mais antigos acham-se por norma depositados nos Arquivos Distritais.
Se apenas tem conhecimento dos nomes dos seus avós, deverá iniciar a sua pesquisa procurando obter uma certidão do registro de nascimento dos seus pais, dirigindo-se para o efeito à respectiva Conservatória do Registro Civil. Através deste documento fica a conhecer os nomes dos seus bisavós, bem como outros elementos biográficos. O mesmo deverá depois fazer para os registros de nascimento dos seus avós, através dos quais ficará também a conhecer os seus trisavós. No caso dos seus avós terem nascido há mais de 100 anos, deverá procurar os respectivos assentos de batismo nos Arquivos Distritais.
Sempre que procurar um assento de batismo ou de casamento no tempo, tenha presente que normalmente as gerações têm intervalos médios de 25 anos. Porém, há sempre excepções.
À medida que vai conhecendo os seus antepassados e construindo a sua árvore genealógica, com base nos registros paroquiais, poderá simultaneamente consultar outras fontes documentais manuscritas que se encontram à sua disposição nos Arquivos Distritais e sobretudo na Torre do Tombo, as quais lhe permitirão enriquecer as biografias das pessoas que são objeto do seu estudo.
Nos Arquivos Distritais pode encontrar os seguintes fundos:
Fundos paroquiais.
Cartórios notariais.
São sobretudo de grande interesse para a genealogia os seguintes fundos e colecções da Torre do Tombo:
Câmara Eclesiástica de Lisboa
Dispensas Matrimoniais (ID: C330A-1 a 150)
Habilitações de genere para ordens menores e sacras (ID: L 619/3)
Tribunal do Santo Ofício
Diligências de habilitação (ID: L449 a 471A; C1078-1 a 25; C974 a 989 habilitações incompletas; C990, habilitações de mulheres);
Processos da Inquisição de Lisboa
Processos da Inquisição de Coimbra
Processos da Inquisição de Évora (base de dados; para a Inquisição de Évora ver também ID C990A-1 a 113)
Mesa da Consciência e Ordens
Habilitações para a Ordem de Cristo (ID: C661 a 729)
Habilitações para a Ordem de São Bento de Avis (ID: C644 a 653)
Habilitações para a Ordem de Santiago (ID: C734 a 741)
Habilitações para a Ordem de de Malta (ID: C731);
Registo Geral de Mercês
Chancelaria Régia (ID: L20 a 206, por reinados;
Chancelarias de D. Duarte e D. João II (em base de dados)
Desembargo do Paço (ID: Inventário publicado)
Habilitações de Bacharéis (ID: L259 e 260)
Repartição da Corte, Estremadura e Ilhas (ID: L246 a 255)
Repartição do Minho e Trás-os-Montes (ID: L238 a 242, F)
Repartição das Beiras (ID: L245, F)
Repartição do Alentejo e Algarve (ID: L257 a 258A, F)
Casa Real
Cartório da Nobreza - Processos de justificação de nobreza (ID: L17)
Mordomia-mor da Casa Real (ID: C9/1 a 9/162)
Livros de matrícula dos moradores da Casa Real (ID: L370 e 371)
Livros das Ementas (ID: L261 e 262)
Casa da Suplicação
Processos de justificação de nobreza para obtenção de cartas de brasão (ID: L263)
Genealogias manuscritas (ID: L484, publicado)
Morgados e Capelas
Vínculos ou Registos vinculares (ID: C1063 a 1066)
Gavetas (ID: L267 a 270)
Corpo Cronológico (ID: L230 a 234)
E ainda os diversos Arquivos de Famílias (Guia Geral dos Fundos da Torre do Tombo, vol. VI)
Publicado pelo SICA
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