quinta-feira, 3 de novembro de 2011

BRASIL: A verdadeira história de Ribi Muyal, em Manaus por David Salgado



Foto Ilustrativa


* Ribi equivale a Rabi ou Rabino - O termo é usado em várias comunidades do Oriente Médio

Uma visita à família Muyal em Israel

O encontro estava marcado para o dia 19 de outubro de 2005. Por volta das 10h, estávamos eu, Simone e as crianças, batendo à porta da família Muyal, na cidadela, Ishuv Omer, a dez minutos do centro da cidade de Beersheva. Fomos recebidos pelo professor Meyr Muyal. Voltemos atrás, no entanto, duas semanas antes, quando tudo começou. Eu e minhas idéias!... Vamos!

Lendo uma das edições anteriores do Amazônia Judaica, encontrei a reportagem que escreveu o Dr. Isaac Dahan sobre o Ribi* Shalom Imanu- El Muyal, como era chamado o rabino, e a maneira como ele tinha falecido, em 12 de março de 1910 (1º de Adar II, 5670), em Manaus, época em que não havia, na cidade, Cemitério Israelita organizado e os judeus eram enterrados no cemitério católico. Atualmente, o Cemitério Israelita onde está sepultado o Rabino Muyal está localizado ao lado do cemitério católico de São João Batista.

Ribi Muyal morreu provavelmente de febre amarela quando de sua visita à comunidade da região manauara. Depois de muitos anos, começaram a surgir, ninguém sabe precisar exatamente em que ano, placas em mármore em volta de sua sepultura. Sabia-se que essas placas faziam parte do costume católico de agradecer aos Santos por "graças alcançadas". Em cada placa indicativa do "milagre", consta a data em que foi realizado e a frase "Graça Alcançada". Foi vendo essas placas que a comunidade judaica de Manaus descobriu que o Ribi Muyal estava virando "Santo Milagreiro" para os católicos da cidade.

Lembro-me bem que quando trabalhava como sheliach comunitário em Manaus, chegavam turistas judeus que já tinham ouvido falar do Ribi Muyal e seus milagres, querendo saber onde ficava localizada sua sepultura. Assim, cada vez mais, foi-se disseminando essa história do "Rabino Santo Milagreiro de Manaus"...

Os judeus marroquinos e de outras regiões também têm seus costumes e suas crenças e, logo surgiram, dentro da própria comunidade judaica, histórias de milagres do Ribi Muyal. Por exemplo, sabe-se que a mulher que dele cuidava quando esteve muito doente era uma senhora judia, que não teve medo de um eventual contágio ao tratá-lo, pois muitas epidemias grassavam, à época, como malária, cólera, febre amarela e outras. Esta possibilidade, porém, não deteve a bondosa senhora, que continuou cuidando do "Grande Rabino", tentando amenizar seu sofrimento. Algum tempo após ele falecer, essa mesma senhora, certa vez, foi abordada por uma pessoa que tinha muitas dores em um dos braços. Ela, então, como por instinto, começou a massagear-lhe o braço dolorido e não demorou muito se ouviu um estalo, como o feito por um osso que retorna a seu lugar. As dores diminuíram acentuadamente e a pessoa agradeceu à bondosa senhora pelo que fizera. Também não tardou muito e outros passaram a procurá-la para resolver seus problemas de "desmentidura" . O interessante é que nem a própria sabia desse seu poder, adquirido logo após a passagem de Ribi Muyal para o Mundo Eterno, e, como explicação para tal, ficou o fato dela ter tratado do Rabino durante sua doença, sem receio algum de se contaminar.

Outra situação muito conhecida na comunidade manauara é a de um senhor - ainda me lembro bem dele naquele estado - com um problema sério no pescoço que o impedia de andar com a cabeça na posição vertical; esta sempre pendia para o lado. Depois de ter consultado médicos em busca de uma solução para o problema, sem nenhum resultado satisfatório, a mãe do rapaz tomou importante decisão. Abraçada em sua fé no Eterno, D'us de Israel, dirigiu-se certa manhã à tumba de Ribi Muyal, onde fez um pedido especial para que seu filho tivesse pleno restabelecimento.

Não demorou muito tempo e o homem acordou certa manhã, depois de ter sonhado durante a noite que uma mão muito delicada empurrava o seu rosto, que sempre estivera quase grudado ao ombro, para a posição vertical. Aquilo lhe parecia muito estranho, mas para sua surpresa e imensa alegria, ao acordar, percebeu que estava sem dor e podia olhar-se no espelho de maneira normal, como todos nós!

Essas e outras histórias qualquer um pode ouvir pesquisando um pouco na comunidade judaica amazônica. Entre os não-judeus, as histórias são em número bem maior e os milagres, ainda mais inimagináveis.

A comunidade de Manaus tem o min'hag (costume) de visitar o Cemitério Israelita e a sepultura do Ribi Muyal, todos os anos, dias antes de Rosh Hashaná, com o objetivo de recitar uma Hashkabá para ele e todos os outros que ali descansam. Foi assim que notaram que as placas de "graça alcançada" iam aumentando ano após ano e, por isso, decidiu-se fazer uma sepultura protegida com muro e grade, como está até hoje.

Tendo a história do "Rabino Milagreiro de Manaus" ganhado o mundo, certa vez, esteve em Manaus um israelense interessado em maiores detalhes sobre tão intrigantes acontecimentos. Ele era amigo, em Israel, de alguém com o mesmo sobrenome, Muyal, e queria coletar o máximo de informações para, quando de seu regresso, contar ao amigo. Assim fez. Quando retornou a Israel, procurou o amigo Muyal e lhe contou toda a história do Rabino, que teria viajado do Marrocos para a Amazônia para angariar fundos para sua ieshivá e, infelizmente, tendo adoecido, lá veio a falecer. Contou que ele era considerado "santo" para os católicos na Amazônia, onde se dizia que, até hoje, operava milagres. Finalmente disse ao seu amigo que o Rabino se chamava Shalom Imanu-El Muyal e, então perguntou se por acaso não era seu parente. A resposta foi surpreendente. Shalom Imanu-El Muyal era tio de seu amigo, irmão de seu pai, Avraham Itzchak Muyal!

Esta conversa aconteceu por volta de 1980 e o nome desse sobrinho de Ribi Muyal, sobre quem falamos, é Eliahu Muyal, membro do Parlamento de Israel e Vice Ministro dos Transportes durante o primeiro mandato do Primeiro Ministro Yitzhak Rabin, entre 1980 e 1982.

Ely Muyal, como era chamado, ficou estupefato ao saber que seu tio, irmão de seu falecido pai, era considerado "santo" pelos não-judeus. Pediu ao amigo todos os detalhes que conhecia e, principalmente, onde era o local exato da sepultura do tio. De posse de todas informações, escreveu uma carta à comunidade judaica de Manaus, endereçada ao seu presidente, na época o professor Samuel Benchimol. Na correspondência, Ely Muyal, resumidamente, solicitava que a comunidade israelita do Amazonas providenciasse junto às autoridades competentes a remoção do corpo de Ribi Muyal para a Terra de Israel. O professor Samuel, sabendo estar diante um caso delicado, consultou o sheliach comunitário, Dr. Isaac Dahan, para saber que providências deveriam tomar. Após pesquisar e debater o assunto, o professor Samuel Benchimol respondeu. Mas a resposta não agradou ao sobrinho do Rabino que, entretanto, nada pôde fazer. Infelizmente, todas essas correspondências não foram localizadas. A carta dizia que não haveria possibilidade de remoção do corpo do Rabino Muyal pelo fato dele se ter tornado uma figura importante para os católicos da cidade. "Aquilo poderia causar uma comoção. Nem tanto para a comunidade judaica, mas entre a população geral do Estado seria muito grande", relatou Isaac Dahan. Eles diriam: "Como assim, querem levar daqui o nosso 'Rabino Milagreiro'?!?"

Ely Muyal, que faleceu em 1991, em Israel, tinha dois irmãos: David, também falecido, e Meyr, além de mais três irmãs.

Bem, voltemos ao início de meu artigo... Fomos recebidos pelo Professor Meyr Muyal. Um senhor de avançada idade, cabelos grisalhos, muito gentil. Já pelo telefone ele se emocionara quando contei o objetivo de minha visita. Queria lhe mostrar o filme Eretz Amazônia, no qual poderia ver a sepultura de seu tio. Sua esposa e alguns amigos também se interessaram em assistir o documentário e começamos os preparativos técnicos para a apresentação na pequena TV da família.

Antes, porém, tive a oportunidade de conversar alguns minutos com o professor Meyr Muyal, e logo alguns detalhes históricos foram esclarecidos. Ele sabia, desde criança, contado pelo pai, Rabi Avraham Itzchak Muyal, que seu tio, Rabi Shalom Muyal, fora enviado para a Amazônia, no Brasil. Ele ia a pedido do grande Rabino Refael Encáua, Rabino Chefe da comunidade judaica do Marrocos, no início do século 20, para tentar reaproximar do judaísmo os judeus daquela região, que estavam, pouco a pouco, abandonando sua fé milenar. Esse primeiro fato contradiz o que sabia a comunidade amazonense, para a qual o Rabino Muyal viera à região angariar recursos para sua ieshivá, em Jerusalém. Meyr Muyal reforçou a sua história, dizendo que, sendo sua família muito rica no Marrocos, não precisariam fazer campanhas de arrecadação, mesmo que para uma ieshivá ou a pedido de um grande rabino, como se dizia ter ocorrido.

Um segundo fato importante e relevante que nos contou Meyr é que o Rabino Muyal nunca esteve em Israel. A realidade é que ele saíra do Marrocos para a Amazônia, a pedido do Ribi Refael Encáua, e que essas duas famílias - Muyal e Encáua - eram muito próximas. Ele partiu de Salé, no Marrocos, no ano de 1908, portanto, esteve na região amazônica durante quase dois anos até adoecer e falecer, em 1910. O professor Meyr Muyal esclareceu que seu pai freqüentava a mesma Esnoga do Ribi Refael Encáua, na cidade de Salé.

Enquanto passava o filme, fui explicando as imagens com detalhes, para que todos pudessem entender, já que o português não era compreendido por nenhum deles. Logo percebi que o interesse não era bem pela história do filme e sim pela sepultura do Ribi Muyal. Quando chegou o momento, a emoção tomou conta de todos. Se foi emocionante para mim, imaginem vocês, então, para o próprio Meyr. As lágrimas escorriam por sua face ao ver a sepultura do tio rabino, o mesmo da história tantas vezes contada por seu pai.

Passaram-se alguns minutos e o professor Meyr Muyal, com um sorriso enorme em seu rosto, demonstrava estar feliz por ter tido a oportunidade de ver, mesmo que de tão longe, a sepultura de seu pranteado tio.

Chegada a hora da partida, ao me despedir com Simone e as crianças, dei-lhe a cópia do filme Eretz Amazônia, de presente. Ele me retribuiu com um sorriso e pediu que eu deixasse lá um valor para tzedacá. E assim fiz. Assim terminou nossa visita à família Muyal.

Inúmeras são as histórias contadas em Manaus sobre os milagres de Ribi Shalom Imanu-El Muyal que veio a falecer nesta cidade em 1910.


Judeus há 200 anos na Amazônia

Família de Max Diniz Fima, Alenquer, Pará (foto de Sergio Zalis, acervo do Museu da Diáspora em Tel Aviv): simbolos religiosos em convivência pacífica

Túmulo do "rabino santo", em cemitério cristão, motivo de peregrinação por conta da fama de "milagreiro" (foto S.Zalis)

A imigração de judeus do Marrocos para a Amazônia começou em 1810. Eles vinham atraídos pelas promessas de liberdade e riqueza, mas tiveram que trabalhar muito para sobreviver. Como mascates, pecorreram incansavelmente os 3.800 quilômetros de rios que ligam Manaus a Belém. Instalaram-se em distintos povoados, construíram famílias, prosperaram, mantiveram alguns costumes e integraram-se. Hoje, quando essa imigração completa 200 anos, tudo indica que haja cerca de 60 mil “caboclos” de origem judaica na região. Assim, traços indígenas e sobrenomes como Levy ou Benzaquen, portados com orgulho por famílias cristãs, fazem parte do cotidiano de um Brasil que não nega a mistura.

Na próxima quarta-feira, 17 de março, a partir das 19 horas, tudo isso será mostrado na sinagoga Shel Guemilut Hassadim (rua Rodrigo de Brito 37, Botafogo), no documentário Os Hebraicos da Amazônia (realização do jornalista e escritor Henrique Veltman, produção de Henrique Goldman) e na palestra Judaísmo na Selva, pelo presidente do Museu Judaico, Max Nahmias. A entrada é franca. O autor da lei que institui o Dia da Imigração Judaica no Brasil, deputado Marcelo Itagiba, estará presente.

Ele e o fotógrafo Sergio Zalis foram incumbidos em 1983, pelo Beth Hatefusot, o Museu da Diáspora da Universidade de Tel-Aviv, de documentar a saga dos judeus marroquinos na Amazônia. As fotos estão no acervo da instituição e nunca foram vistas, em seu conjunto, no Brasil.

Os Hebraicos da Amazônia, por Henrique Veltman Em 1981, o Beth Hatefutsot pediu ao fotógrafo Sérgio Zalis, na época aluno da escola de arte Betzalel, em Jerusalém, uma documentação do judaísmo brasileiro. Sérgio veio ao meu encontro, em São Paulo, sem maiores recursos além de sua boa vontade, e eu fiz ver a ele que a comunidade judaica brasileira estava espalhada pelos quatro cantos do país, e seria interessante estabelecer qual comunidade seria objeto de sua pesquisa. Elaboramos uma relação de possíveis registros, e Tel Aviv foi consultada. O Beth, depois de várias reuniões, decidiu-se pelo Norte do Brasil.

Em janeiro de 1983, finalmente, o Beth Hatefutsot, o Museu da Diáspora da Universidade de Tel-Aviv,Israel, encomendou-nos a realização de uma documentação sobre o que até então era uma história muito pouco conhecida: a saga dos judeus marroquinos e de seus descendentes, os hebraicos, na longínqua e misteriosa Amazônia.

Com o apoio do empresário Israel Klabin, durante um mês, percorremos aquela imensidão, começando por Belém do Pará, seguindo depois para Cametá, às margens do rio Tocantins. Dali, partimos para Abaetetuba, Alenquer, Santarém, Óbidos, Maués, Itacoatiara, Manaus, Porto Velho e Guajará Mirim.

Em todos esses lugares, encontramos judeus, descendentes de judeus e registros impressionantes da passagem dos judeus de origem marroquina pela Amazônia.

Elaborei um texto, quase crônica, e Zalis produziu as fotos. Com esse material, o Museu de Tel-Aviv realizou, em outubro de 1987, uma exposição sobre os judeus na Amazônia. Essa exposição, que depois percorreu o mundo, de Londres a Paris, Roma a Madri, ao Marrocos e aos Estados Unidos, ainda é desconhecida do público brasileiro. Foi uma das exposições transitórias do Museu, de maior afluência de público.

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