quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O Que acontece quando morremos?







Por Shlomo Yaffe e Yanki Tauber

Uma das crenças fundamentais do Judaísmo é que a vida não começa com o nascimento nem termina com a morte. Isso está articulado no versículo em Cohêlet (Eclesiastes): "E o pó retorna à terra como era, e o espírito retorna a D'us, que o deu."1

O Rebe enfatizava que uma lei básica da Física (conhecida como a Primeira Lei da Termodinâmica) é que nenhuma energia jamais é "perdida" ou destruída; apenas assume outra forma. Se este é o caso com a energia física, muito mais com uma entidade espiritual como a alma, cuja existência não está limitada ao tempo e espaço nem a qualquer um dos delineadores do estado físico.

Certamente, a energia espiritual que no ser humano é a fonte de visão e audição, emoção e intelecto, vontade e consciência não deixa de existir meramente porque o corpo físico deixou de funcionar; ao contrário, passa de uma forma de existência (vida física expressa e atuante via corpo) a uma forma mais elevada, exclusivamente espiritual, de existência.

Embora haja numerosas estações na jornada de uma alma, estas podem ser geralmente agrupadas em quatro fases gerais:


  • Experimentamos a verdadeira importância e efeito de nossas ações. Aumentar o volume daquela TV que mostra a orquestra sinfônica pode ser agradável ou intensamente doloroso, dependendo de como tocamos a música de nossa vida.

    a existência totalmente espiritual da alma antes de entrar no corpo
  • a vida física
  • a vida pós-física no Gan Eden
  • Mundo Vindouro (Olam Habá), que se segue à Ressurreição dos Mortos.

O que são estas quatro fases e por que são todas necessárias?

Ver ou não ver:
o Paradoxo do Livre Arbítrio


Como é discutido amplamente no ensinamento chassídico,2 o supremo propósito da alma é cumprido durante o tempo que passa neste mundo físico, tornando este mundo "uma morada para D'us", encontrando e expressando a Divindade na vida cotidiana pelo cumprimento das mitsvot.

Porém, para que nossas ações neste mundo tenham um verdadeiro significado, devem ser produto de nosso livre arbítrio. Se quisermos experimentar o poder e a beleza da Divina presença que trazemos ao mundo com nossas mitsvot, devemos sempre escolher o que é certo e assim perder nossa autonomia. O óbvio se torna robótico. Nossos feitos não seriam nossos, assim como não é "um feito" fazermos três refeições ao dia ou evitar pular dentro de uma fogueira.

Portanto, este estágio crucial de nossa existência é vivido sob as condições de um blecaute espiritual quase completo: num mundo em que a realidade Divina está oculta, no qual nosso propósito na vida não é óbvio; um mundo no qual "todos os seus assuntos são severos e o mal e os perversos prevalecem".3

Por outro lado, no entanto, como seria possível descobrir a bondade e a verdade sob estas condições? Se a alma é atirada num mundo tão sem D'us e cortada de todo o conhecimento do Divino, de que maneira ela poderia descobrir o caminho da verdade?

É por isso que a alma existe num estado puramente espiritual antes de descer a este mundo. Em sua existência pré-física, a alma está fortalecida com a Divina sabedoria, conhecimento e visão que a habilitará para a sua luta para transcender e transformar a realidade física.

Nas palavras do Talmud: "O feto no útero da mãe aprende toda a Torá… Quando chega a hora de emergir na atmosfera deste mundo, vem um anjo e lhe dá um tapinha na boca, fazendo-o esquecer tudo."4

Uma pergunta óbvia: Se somos ordenados a esquecer tudo, então por que nos ensinar? Mas aqui está todo o paradoxo do conhecimento e opção: não podemos ver a verdade, nem sequer podemos conhecê-la abertamente, mas ao mesmo tempo nós a conhecemos, dentro de nós. Bem lá no fundo podemos preferir ignorá-la, mas também lá no fundo, onde quer que estejamos e o que quer que nos tornemos, sempre podemos escolher desenterrá-la. Isto, em última análise, é opção; nossa escolha entre perseguir o conhecimento implantado em nossa alma ou suprimi-lo.

A exclusividade mútua da conquista e recompensa

Assim está montado o cenário para a Fase II: os testes, sofrimentos e tribulações da vida física. As características do físico – o fato de ser finito, opaco, preocupado consigo mesmo, sua tendência a ocultar o que está por trás dele – formam um pesado véu que obscurece praticamente todo o conhecimento e lembrança de nossa fonte Divina. E mesmo assim, lá no fundo sabemos diferenciar o certo do errado. De alguma forma, sabemos que a vida é significativa, que estamos aqui para cumprir o propósito Divino; de alguma forma, quando confrontados com uma opção entre uma ação Divina e uma não-Divina, sabemos a diferença. O conhecimento é tênue – uma lembrança nublada, subconsciente, de um estado espiritual anterior. Podemos silenciá-lo ou amplificá-lo – a opção é nossa.


Recitar o Kadish e fazer outras boas ações "pelo mérito de" e "para elevação da alma" que se foi significa que a alma, na verdade, está continuando a atuar positivamente sobre o mundo físico, dessa maneira acrescentando à bondade da sua vida física

Tudo que é físico é, por definição, finito; de fato, é isso que o torna uma ocultação da infinitude do Divino. Intrínseco na vida física está o fato de que é finita: ela termina. Uma vez que tenha terminado – e nossa alma está livre da sua incorporação física – não podemos mais realizar e cumprir. Mas agora, finalmente, podemos contemplar e extrair satisfação daquilo que realizamos.

As duas são mutuamente exclusivas; a realização impede a satisfação, a satisfação impede a realização. A realização somente pode ocorrer na cegueira espiritual do mundo físico; a satisfação somente pode ocorrer no ambiente sem escolha da realidade espiritual.
O Talmud cita o versículo: "Cumprirás esta mitsvá, os decretos e as leis que Eu te ordeno hoje cumprir."5 "Cumpri-los hoje" – explica o Talmud – "mas não fazê-los amanhã. Fazê-los hoje, e amanhã receber a recompensa."6 A Ética dos Pais explica dessa maneira: "Um único momento de arrependimento e boas ações nesse mundo é maior que tudo no Mundo Vindouro. E um único momento de felicidade no Mundo Vindouro vale mais que tudo neste mundo."7

É como se passássemos cem anos assistindo a uma orquestra tocar uma sinfonia na televisão – com o som desligado. Observamos os movimentos da mão do maestro e os músicos. Às vezes perguntamos: por que as pessoas na tela estão fazendo estranhos movimentos sem nenhum objetivo? Às vezes entendemos que uma grande sinfonia estava sendo tocada, mas não ouvimos uma única nota. Após cem anos assistindo em silêncio, assistimos de novo – desta vez com o som ligado.

A orquestra somos nós mesmos, e a música – bem ou mal interpretada – são os atos de nossa vida.

O que é céu e inferno?

Céu e inferno é onde a alma recebe sua punição e recompensa depois da morte. Sim, o Judaísmo acredita, e fontes judaicas tradicionais discutem extensivamente a punição e recompensa após a vida (na verdade, este é um dos "Treze Princípios" do Judaísmo enumerados por Maimônides). Porém são um "céu" e "inferno" diferentes daqueles descritos nos textos cristãos medievais ou nos cartoons dos jornais. O céu não é um lugar de halos e harpas, nem o inferno está povoado por aquelas criaturas vermelhas com tridentes. Após a morte, a alma retorna à sua fonte Divina, juntamente com toda a Divindade que "extraiu" do mundo físico usando-o para fins significativos. A alma agora revive suas experiências em um outro plano, e experimenta o bem que realizou durante seu tempo de vida física como felicidade e prazer incríveis, e o negativo como incrivelmente doloroso.

O prazer e a dor não são recompensa e punição no sentido convencional – no sentido que podemos punir um criminoso enviando-o para a prisão ou recompensando um funcionário dedicado com um aumento. É aquilo que passamos em nossa própria vida em sua realidade – uma realidade da qual estivemos abrigados durante nossa vida física. Experimentamos a verdadeira importância e efeito de nossas ações. Aumentar o volume daquela TV que mostra a orquestra sinfônica pode ser agradável ou intensamente doloroso,8 dependendo de como tocamos a música de nossa vida.

Quando a alma deixa o corpo, fica perante a Corte Celestial para fazer uma "avaliação e prestar contas" de sua vida terrena.9 Porém a Corte Celestial faz apenas a "contabilidade"; a parte da "avaliação" somente a própria alma pode fazer.10 Somente a alma pode julgar a si mesma – pode sentir e conhecer a verdadeira extensão daquilo que realizou, ou negligenciou em realizar no decorrer de sua vida física. Libertada das limitações e ocultação do seu estado físico, pode agora ver a Divindade; pode olhar sua própria vida em retrospecto e ver como foi realmente. A vivência da Divindade por parte da alma é trazida ao mundo com suas mitsvot e ações positivas no requintado prazer do Gan Eden; sua experiência da destruição forjada pelos seus lapsos e transgressões é a dor insuportável do Guehinon (Purgatório).

A verdade dói. A verdade também purifica e cura. A dor espiritual do Guehinon – o sofrimento da alma ao enfrentar a verdade da sua vida – purifica e cura a alma das manchas e falhas que seus erros provocaram nela. Livre desta camada de negatividade, a alma agora está apta a apreciar realmente o imenso bem que sua vida engendrou e "banhar-se na radiância Divina" emitida pela Divindade que trouxe ao mundo.

Sim, uma alma Divina espalha muito mais bem que mal durante sua vida. O âmago da alma é feito de bondade; o bem que realizamos é infinito, o mal apenas superficial. Portanto, até a mais perversa das almas, dizem nossos Sábios, passa, no máximo, doze meses no Guehinon, seguidos por uma eternidade no céu. Além disso, a passagem da alma pelo Guehinon pode ser mitigada pela ação de seus filhos e entes queridos aqui na terra. Recitar o Kadish e fazer outras boas ações "pelo mérito de" e "para elevação da alma" que se foi significa que a alma, na verdade, está continuando a atuar positivamente sobre o mundo físico, dessa maneira acrescentando à bondade da sua vida física.11

A alma, por sua vez, permanece envolvida na vida daqueles que deixou para trás quando partiu da vida física. A alma da mãe ou pai continua a vigiar a vida dos seus filhos e netos, para sentir orgulho (ou sofrer) com seus atos e realizações, e para interceder por eles perante o Trono Celestial; o mesmo se aplica àqueles com quem a alma estava conectada com laços de amor, amizade e comunidade. Na verdade, como a alma não está mais restrita pelas limitações do estado físico, seu relacionamento com os entes queridos é, de muitas maneiras, ainda mais profundo e significativo que antes.

No entanto, embora a alma esteja consciente de tudo que transpira na vida dos seus entes queridos, as almas que permanecem no mundo físico estão limitadas àquilo que podem perceber através dos cinco sentidos do corpo físico. Somente podemos causar impacto na alma de um ente querido que se foi por meio de nossas ações positivas, mas não podemos nos comunicar com ela por meios convencionais (fala, visão, contato físico, etc.) que, antes do seu passamento, definia a maneira de nos relacionarmos uns com os outros. (De fato, a Torá proíbe expressamente as práticas idólatras da necromancia, mediunidade e tentativas similares de "fazer contato" com o mundo dos mortos.) Por isso a ocorrência da morte, embora signifique uma elevação para a alma de quem parte, é sentida como uma trágica perda para aqueles que aqui ficam.

Reencarnação:
Uma segunda chance


Cada alma individual é enviada ao mundo físico com sua própria missão individualizada para cumprir. Como judeus, todos temos a mesma Torá com as mesmas 613 mitsvot, mas cada um de nós tem seu próprio conjunto de desafios, talentos e capacidades, e mitsvot específicas que formam o cerne de sua missão na vida.

Às vezes, a alma talvez não conclua sua missão numa única vida. Nestes casos, retorna à terra para "uma segunda vinda" para completar o trabalho. Este é o conceito de guilgul neshamot – comumente chamado de "reencarnação" – extensivamente discutido nos ensinamentos da Cabalá.12 É por isso que com muita freqüência nos sentimos atraídos a uma mistvá ou causa específica, e fazemos dela o foco de nossa vida, dedicando a isso uma parte aparentemente desproporcional de nosso tempo e energia: é nossa alma gravitando ao redor das "peças que faltam" de seu propósito Divinamente ordenado. 13

O Mundo Vindouro

Assim como a alma individual passa através de três estágios – preparação para a sua missão, a missão em si e a fase subseqüente de satisfação pela recompensa – assim, também, o faz a Criação como um todo. Uma cadeia de "mundos" espirituais precede a realidade física, para servi-la como uma fonte de vitalidade Divina. Então vem a era do Olam HaZê (Este Mundo), no qual o Divino propósito da Criação é desempenhado. Finalmente, quando a humanidade como um todo completou sua missão de tornar o mundo físico "uma morada para D'us", vem a era da recompensa universal – O Mundo Vindouro (Olam Habá).

Há uma grande diferença entre o "mundo da recompensa" de uma alma individual no Gan Eden e a recompensa universal no Mundo Vindouro. O Gan Eden é um mundo espiritual, habitado por almas sem corpos físicos; o Mundo Vindouro é um mundo físico, habitado por almas com corpos físicos14 (embora a própria natureza do físico terá de passar por uma transformação fundamental, como se vê abaixo).

No Mundo Vindouro, a realidade física "abrigará" perfeitamente e refletirá a Divina realidade que irá transcender a limitação e a temporalidade que a define hoje. Assim, embora no mundo imperfeito de hoje a alma possa apenas experimentar a "recompensa" depois de partir do corpo e da vida física, no Mundo Vindouro, a alma e o corpo estarão reunidos e juntos apreciarão os frutos de seu trabalho. Assim os profetas de Israel falaram sobre um tempo quando todos que morreram serão restaurados à vida; seus corpos serão regenerados15 e suas almas restauradas aos corpos. "A morte será erradicada para sempre"16 e o mundo estará repleto com o conhecimento de D'us como a água cobre o leito do mar.17

Isso, obviamente, sinalizará o fim da "Era da realização".18 O véu da fisicalidade, rarificado até a completa transparência, não ocultará mais a verdade de D'us, mas sim a expressará e a revelará de maneira ainda mais profunda que a realidade espiritual mais elevada.

A Bondade e a Divindade deixarão de ser algo que fazemos e atingimos, pois será aquilo que somos. Porém nossa experiência de bondade será absoluta. Ambos, corpo e alma, reunidos como estavam antes de serem separados pela morte, habitarão todo o bem que realizamos com nossas ações livremente escolhidas nos desafios e ocultações da vida física.


Notas:
1 – Cohêlet 12:7
2 - Veja: Body: O Mundo Feisico Segundo Rabi Shneur Zalman de Liadi.
3 – Tanya, cap. 6
4 – Talmud. Nidá 30b.
5 – Devarim 7:11.
6 – Talmud, Eruvin 22a.
7 – Ética dos Pais 4:17.
8 – Assim os Sábios falaram sobre um "Gehenna de Fogo" no qual sentimos o "calor" totalmente destrutivo de nossos desejos ilícitos, raiva e ódios; e um "Gehenna de Neve", no qual estamos expostos ao "frio" de nossos momentos de indiferença a D'us e aos nossos semelhantes.
9 – Ética dos Pais 3:1; et al.
10 – Rabi Israel Báal Shem Tov.
11 – É por isso que se dá tanta ênfase à recitação do Kadish e outras ações para elevação da alma de um falecido durante o primeiro ano após sua morte.
12 – De fato, os cabalistas dizem que estes dias – após 6.000 anos de história humana – uma alma "nova" é uma raridade; a esmagadora maioria de nós é de almas reencarnadas, que voltaram à terra para preencher as lacunas de uma vida anterior.
13 – Para ler mais sobre o assunto, veja nossos artigos sobre Reencarnação.
14 – Este é na verdade tema de debate entre dois grandes pensadores judeus e autoridades de Torá, Maimônides e Nachmânides; os ensinamentos da Cabalá e Chassidismo seguem a abordagem de Nachmânides, que vê a suprema recompensa como ocorrendo num mundo de almas incorporadas. Para ler mais sobre isso, veja A Ressurreição dos Mortos.
15 – É interessante saber que muito antes da descoberta da genética e do DNA, o Talmud fala sobre um osso minúsculo e indestrutível do corpo chamado luz, a partir do qual todo o corpo será reconstruído após ter retornado ao pó.
16 – Yeshayáhu 25:8.
17 – Yeshayáhu 11:9.
18 – O Talmud chega a citar o versículo (Cohêlet 12:1): "Haverá anos sobre os quais você dirá: Não tenho desejo neles", e declara" "Isso se refere aos dias da Era Messiânica, na qual não há mérito nem obrigação" (Talmud, Shabat 151b).

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